Friday, June 30, 2006


CAP I
LIBERDADE
2 – Morte

II


“Assim sendo, de que forma me devo adaptar e utilizar os vigilantes?” Procurei ultrapassar a situação. Virou-me as costas num movimento de graciosidade reptiliana, deixando-me a vista das suas costas pálidas e repletas de pequenos lagos escuros, entre nevoso campo, de nódoas negras. “Deixa que te devorem estes teus estimados abutres, cava para ti uma cova, deixa-te como morto, não penses.” Naquela mesma noite, por desespero, cavei para mim um buraco e procurei adormecer no mesmo, sendo que a insónia me conquistou e tudo o que consegui foi a permanência daqueles olhares ardentes.
Chegou a manhã, e, erguendo-me, encontrei a Morte a engolir a carne podre de determinada ave, a carne pegava-se, facilmente, aos seus dedos. Passava, geralmente, pelo mesmo ritual, mas fora esta a primeira vez que o/a encontrei na mesma situação. Juntei-me a ele, ofuscado pelo manto negro que hoje vestia, e sem lhe puder ver a face. “O que és afinal, o diabo, ou a morte?” Brinquei, um pouco horrorizado não obstante, causava-me, de momento, asco ver o que agora via, enquanto faze-lo eu própria se tornara indiferente a meus olhos. Riu-se, com carne desfeita besuntando os seus dentes e deixou cair o manto sobre a carcaça. “Chama-me de exorcista! A flama de todos os corações: Amor. Todo o homem árido,” chupou os restos que insistiam em permanecer no seu dedo, enquanto limpava a outra mão ao seu manto “todo o homem casto, morre aqui. Eu amaldiçoarei este com uma libertação, mas eu abençoarei os livres, aqueles que tomam sempre a sua enchente de emoção sob e sobre as correntes do mundo.” Sorri interiormente. Desejava conversar sobre o que se sucedera no último ordálio, quando a morte, ou o diabo, estava a existir na forma de homem. Não me sentia envergonhado, não me sentia, sequer, culpado. Porém, eu não discutira a homosexualidade com o meu companheiro. Ele, para bem ou para mal, interceptou-me. “O Amor é isto: Nós somos irmãos, e como irmãos não deve haver um pingo de vergonha entre nós, pois a vergonha causa a separação, e a separação causa a dor. Devemos, sempre, encher o copo da nossa alma, deixa-lo transbordar. Somos irmãos sob as estrelas, irmãos incestuosos” enrolou-se em mim como a serpente de Éden e beijou-me com a sua lingua suculenta o pescoço, soltando um perfume pútrido e, todavia, atractivo “para que mantenhamos o seu sangue mágico! Não há diferença de irmão para irmão, o amor não diferencia, une! Assim, existem certas serpentes do corpo que se ão de soltar. Então, todos os poderes do Universo estarão ao nosso alcance, pois nós seremos o Universo e a sua dinâmica criação.” Ri-me, ainda não habituado à nova presença, e pus-lhe resposta. “Cada um possui o seu caminho, o mundo, como muitos já disseram, não passa de uma selva, um, esmagará o outro para seu prórpio proveito.” Os seus olhos grandes, negros e redondos apontaram para os meus e senti-me, de novo, morrer, engolido em densas trevas. “Tolice! Tolice! As estrelas brilham de amor, mas cintilam e ardem de guerra, sem duvida! Porém, a sua guerra consiste em aumentar o seu amor e envia-lo por todo o Universo, e mesmo o seu amor consiste nessa guerra. Tolice dos homens que caem, moribundos! Tolice dos homens que devoro, já tanto ou mais podres quanto este pássaro.” Apesar de toda a fervorosidade, permaneci na opinião de que o Diabo, ou a Morte, acabava por ser pouco prático. Utilizaria os seus ensinamentos para obter mais independência das suas ideias. O meu papel, por agora, era, e proveitosamente, apenas de aprendiz.

Assim que a noite iniciou e o céu nocturno se abriu, procurei de novo a cova, agoniado pela antecipação daquela presença penetrante a que a morte intitulava de “imortais”, sem distracções em que me refugiar. A minha ansiedade provou ter razões de ser, mas, desta vez, ao fim do que pareceu um tempo sem fim de infindo tormento, reparava tornar-me cada vez mais nestes luminosos olhos, reparava ser magnéticamente atraído, como se transportado até aos mesmos. Finalmente, como que sugado através deles, fui lançado no absoluto, no vazio, no nada que, ainda assim, era todo o universo. Permaneci neste estado de paz profunda, vazio de pensamentos e até de sensações, até dar comigo desperto na tarde seguinte.
A morte esperava-me, posicionada sobre mim como uma rapina, o seu nariz peculiarmente longo e fino. Aguardou que me colocasse sobre os meus pés e conduziu-me, silenciosamente, até uma árvore curvada e enrugada, de sete frutos escuros. “Esta é a Árvore da Morte. Tu entenderás o que está por detrás de cada um destes frutos, então eu vou-te questionar sobre a tua compreensão dos mesmos. Nessa altura partilharemos do Conhecimento. Tu deverás contemplar estes frutos desde o pôr-do-Sol até ao momento que nasce o mesmo. Começando agora.” Eu sabia que, por exemplo, a voz da morte, só por si, me ajudaria a compreender. Noutras condições, pensaria ser este um exercício inconcretizavel, ou subjectivo à ilusão pessoal. No entanto eu aprendera, ainda que não quisesse, que tudo era ilusão. Sentei-me, fitei o negro brilhante do primeiro fruto redondo, ele parecia reflectir uma luz que, uma vez atravessada, permitia o acesso aos íntimos segredos por detrás. Aguardei.

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