Friday, June 30, 2006

As paredes mostram-me bocas roxas e rosa, repletas de presas e de lábios descarnados; as paredes sagradas da minha casa, do meu templo, do qual procurei escapar...

Vamos lá, convidaram-me hoje para beber uns copos, mas alguns estranhos são tão estranhos que chegam a ser opressivos; que chegam a penetrar-me, a lamber-me as entranhas com olhos prescutantes, interrompem-me de mim para mim, com perguntas impertinentes e sem qualquer importância para uma vida continua da qual não vale a pena tirar os olhos, a risco de perder uma chave mestra. Então eu recusei o convite, adiando-o para mais pacifica ocasião em que os estranhos fossem mais como pontes de mim para mim, ilhas sem mapa que só podem ser aprendidas pela experiencia e lá encerradas no silêncio de tudo o que não pode ser descrito.

Bebi então duas cervejas na minha companhia, ignorando todos os outros entes desta minha habitual habitação; e apeteceu-me fumar bastante, como se isso significasse seja o que for. Enrolei uma camisa à cintura e sai, um vulto negro numa noite roxa; não haviam dentes no céu estrelado de Nuit a minha esposa, sabiam-me a uma aragem nocturna e crepuscular de perdição livre e deslizante. As estrelas eram mais como olhos que rasgam em fogo, mas senti-me embalado pela calmaria serena do mundo obscuro. Quis dirigir-me um pouco mais longe, àquele outro café em que consegui confundir-te de novo, naqueles momentos em que os nossos astros se misturavam e se fundiam, sacrificando-se a um maior magnetismo. Ficava como um lobo que te lambia as cochas e um diabo que reconhecia em ti a marioneta. Deleitava-me e sacrificava-me em cada jogada. Afogaava-me em cada lágrima, porque vinhas sempre já desesperada. E ali renascia como o Sol sangrento contra o horizonte, disposto a fazer-te ver a luz dourada dos novos dias igualmente dourados, por causa de nós, porque os estandartes de liberdade ali oferecidos, devido aos sonhos a teus pés: que pretendia tomassem vida e te preenchessem o peito numa nova e leitosa noite. É claro que não encontrei mortalhas. Não disse obrigado, disse "OK", ele brincou com a minha expressão e enviei-lhe então uma boa Nuit, não fosse o Mar Negro ser-lhe desfavoravel (não que quisesse realmente saber).

Descobri as minhas mortalhas, pedi o meu café e o meu copo de água, perguntei se podia apossar-me do cinzeiro. Atirei um "se faz favor", logo me arrependendo. Culpado por ter cão e por não ter. A simplicidade do ''se faz favor", passa pela ignorância e pela divisão do sentimento de culpa social. A senhora faz o que faz, recebe o seu dinheiro, eu usufruiu dos seus serviços, e depois brincamos ao estranho teatro da gratidão insignificante. Talvez o primeiro tipo tenha inventado o se faz favor por remorso de haver inventado um sistema tão idiota de troca, talvez por querer disfarça-lo, talvez por ignorar que cada um deveria agir segundo o Dever do seu mais Intimo Ser e não pelo que impõem à nossa enferma percepção. Continuo a deixar cair merda que me puseram na boca.
Demorei-me um pouco, porque para lá daquela porta, o céu aberto deixava demasiadas coisas distantes tocar-me ao sabor dos raios estelares. As pedras da pequena rua sangravam contra a minha alma a cada passo, a solidão pesava-me contra ela. O rompimento de todo o meu panteão de deuses vivos, aqueles meus irmãos de sangue, com que partilhei as derrotas e as vitórias de quase coisa nenhuma. Evaporavam-se por razões fora do controle quotidiano, talvez pelos estranhos entre cada coisa e uma outra coisa, talvez pelo fermento das estranhas bestas que nos chocavam sem sabermos como, talvez porque todos aqueles pequenos ovos rompem por gravidade apenas; talvez porque dor, porque a separação possibilita a união; talvez o terror sem fim do isolamento entre as estrelas e dos gritos mudos dos que para lá agonizam, talvez porque só depois disso nos unimos aos que amamos. Eis o panteão dos meus amados, distantes, no que dizem os astros sobre o tempo e os destinos, distantes como para qualquer outro religioso que não vive a divindade entre os homens. A nossa historia, os nossos sulcos, a nossa memória. Então mais uma pinga de culpa me envolve, de culpa por coisa nenhuma. De culpa por dividas de sangue que se perdem em novos estranhos. Sempre novos estranhos... Sempre fantasmas entre rebanhos. Sempre a neblina que cobre e oculta o lobo entre as ruelas do tempo, da eternidade e do momento.

Chegado a casa, escrevi, e contei mais um momento inútil perdido no meio da estupidez ilimitada dos sulcos da existência.




"Cabe a cada um de nós libertarmo-nos da cobiça, do ódio, da inveja e da insegurança. Porque são formas de controle. Querem-nos fazer sentir patéticos, insignificantes, para que de livre vontade possamos desistir da nossa Soberania, da Liberdade, do nosso Destino."

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