Monday, June 26, 2006



CAP I
LIBERDADE
2 – Morte







I

“A nível conceitual e ideológico libertaste-te. O que quero, de momento, é que me confirmes o domínio da morte em relação à vida. Assim sendo, começamos pelos hábitos físicos e rotineiros, escolherás alguns e deixarás que morram, isto é, ver-te-ás livre dos mesmos; isto possibilitar-te-á uma diferente poupança energética, e peço que a utilizes de modo criativo e artístico.” O Diabo brincava com a sua pequena harpa, que se transformara numa harpa de ossos; e o próprio me surgia como imagem da morte, de carne negra (ou pálida) e apodrecida, simultaneamente lasciva e atraente, de uma peculiar suculência. Ele era a figura de Vénus se Vénus fosse também como a figura da Morte. Com esta harpa era composta uma canção, em fábula, da boca da Morte. “Certo dia, Adónis dormia, quando um sussurro o fez sonhar com a corrente estelar dos fabulosos dias. Quando do despertar, já não se encontrou, planando para lá do destino... Comeu o próprio Saturno, ergueu o submundo e deu asas ao seu aluno. Seu, foi, inteiro, o mundo. Saturno é o Senhor dos Sussurros, mas a sua boca constitui-se dos vazios mais soturnos. Ha mil Luas onde a sua boca ilumina, assim são os aneis. Não ha Vénus sem dissolução, e não ha arte sem matéria e não. Quedando-se no Templo desta hora, seja entendido que também, na sua forma, sofre um Deus. O Sofrer de um Deus é como o doce brotar de perfumadas flores no globo da Terra. Um Senhor do meu Nome saberá abster-se, sofrer, morrer. Eis o meu sorriso, o meu deleite. Como a avestruz afundo na terra e aí todo o homem e toda a mulher geme na volupia de Ser. Porém, não ha no meu haver que sou o Sacrificio do Amor? Pois os meus hinos são melodias de prazer e dor, pois canção minha é o Amor. Eu Sou a dupla baqueta laminada, e a espada que empurro em corpo intruso é-me no peito cravada. Os homens são astros numa dança sedutora do meu centro, cada um espeta a sua lança no meu coração inflamado e é curado. A maior vítima do Amor foi a que ganhou por seu intermédio a resplandecente Liberdade. Não ha Vida, não existo morte, sou só Amar. A Sabedoria e a Compreensão são os meus pés quando Dependurada, meu olhar o sinal do Crepusculo, da Alvorada.” Apesar da minha treinada versatibilidade perceptiva, eu não pude entender muito do que ele dizia, mas ele explicou-me que se referia ao amor, e que o amor não racionalizava, compreendia pelo simples facto de compreender. Depois, explicou-me que poucos percebiam a linguagem do amor, e que, o amor, tal como a morte, simboliza, para o homem, o desconhecido, o além. Todas as demandas espirituais se iniciavam assim pelo Desconhecido, apesar do Graal a ser buscado se intitular por Conhecimento.
Para o exercício que me fora pedido, eu decidi não utilizar certas palavras que sentia serem, para mim, mesmo em termos ideológicos, grilhões, e cessei com o tabaco durante algum tempo, tendo, inclusive, evitado cruzar as pernas. Utilizava a energia nervosa gerada para engendrar variados planos, e tomei o hábito de escrever estranhos manifestos, rabiscando e desenhando figuras algo abstractas. O Diabo chamava-lhes “shape-shifters”. Então, ele pediu-me que observasse a minha própria mente, composto em meditação, como matéria morta e inerte, ainda que com determinados movimentos mecânicos. Esta passou a ser também uma prática diária, e eu não entendia, de início, a sua finalidade. Uma vez mais pouco à vontade, fitei a sua lustrosa figura de morte e de mulher, que se passeava nua com os redondos e descaídos seios a projectar toda uma atractiva pestilência, e, com a sensação de que me dirigia a um naco de carne cuja única vida era um encantamento e uma fascinação, questionei-lhe sobre a harpa de ossos, e a mudança da sua aparência. Sobre a harpa, elucidou-me que ela significava a voz da experiência. Relativamente à sua aparência… “Qual das duas: Não mudei de todo, tu mudaste. Ou, eu mudo porque sou o diabo e porém tu, como humano incompetente, ao mudares, nenhum dos teus irmãos igualmente incompetentes o percebe.” Reflecti, sentindo-me oprimido pelo pesar. “E a tua historia altera-se também?” Esbugalhou os olhos como um frio e invulgar peixe. “Sim, passeava-me no Éden ainda antes de Adão e Eva; Lilith, chamavam-me.” Soltou uma risadinha por entre os lábios grossos, que tapou com os seus dedos carnudos, e não pude deixar de reparar como os ruivos cabelos cintilavam como pérolas no Sol daquele Éden em que me perdera. “Oh, era uma tribo que aqui havia: o emissário do grande vidente, que se mostrava alojado numa cave, surgia, no exterior, como um vulto de morte, ele casava os homens com a terra, e com as mulheres. A morte presidia a estas duas coisas, mas, um dia, levou-os a todos, porque a promessa do casamento é uma promessa de eternidade. Também sou aquele homem que, por não estar ali, é uma insistente presença, este homem pelo qual todos esperam e todos desesperam, todos vivem e todos morrem.” A sua voz sugava as partículas de existência e tornavam-nas num eco da sua eclipsante influência.
Segui as instruções, juntamente a uma dieta consistente de bodes e animais mortos. Com o tempo, apercebi-me de que o exercício meditativo me levava a permanecer constantemente em estado e vigilância, inclusive durante o sono. Primeiro, sentia-me apodrecer por dentro, mas sentia-me agora um lampião guardião do Fogo Secreto, portando-o para onde quer que voltasse a minha consciência. Isto abriu-me muitas portas que eu não explicarei por agora, bastando-me dizer que passei a habitar um plano paralelo construído em pura luz e puro espirito. Segui os mesmos passos para o mundo exterior, a principio qualquer objecto perdia a sua importância, então apercebia-me do movimento de elementais, também eles parte da morte e da putrefacção, depois, comecei a aperceber-me da presença de estranhos “Olhos de Luz” por detrás de cada forma geométrica e de cada material. Assustava-me com o facto de, agora, a minha liberdade de realidade estar a ganhar vida própria, de descobrir algo que se separava a si mesmo, por força, irradiação e valor, do meu próprio adquirido nihilismo. A sua chama negra não ganhava força suficiente para devorar esta dura luminosidade. Pedi o concelho da morte. “Estás a ser comido pelos teus abutres pessoais. Somos todos alimento para os Imortais…” E fui deixado em pior estado do que aquele com que partira para esta iniciativa.

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