CAP I
LIBERDADE
1 - Desejo
V
O diabo realizava certas saudações ao Sol acompanhadas de determinados gestos, e, apenas por o observar, sentia uma brisa semelhante a paz percorrendo-me todo. Inquirindo eu sobre tais feitos, explicou-me ser quinze de Maio, um dia propicio para honrar o movimento do Sol. Perguntei-lhe qual a importância ou o simbolismo do movimento do Grande Astro, ele explicou-me que, para o diabo, o movimento do Sol era a constância do comércio, assim, unindo-se à sua rota, ele fundava a própria casa do comércio. Explicou-me que, mesmo nas ocasiões de declínio, como o Outono, ou de escuridão, como o Inverno, ele representava senão as riquezas, sendo, não obstante, sempre temido como aquele que trás más novas e desprezado assim que a luz inunda o mundo. “Num bom negócio,” explicou, “o homem não sente a perda daquilo que troca pelo que mais deseja, mas, como o homem não é bom negociante, não consegue ver como um bom negociante. Repara, o diabo não é realmente pretencioso, a sua função passa unicamente por aquela do mensageiro, e o seu primeiro intuito é o de levar a manhã a habitar mesmo a noite cerrada, isto é, puchar todos os mortos para o fogo, se te mostrares capaz de ver o fogo como o criador de nova força vital. O comerciante, no seu auge, é este sol em movimento, ele não sai prejudicado, é, por si só, o templo do comércio, e para aquele que habita no sol não existem sombras, a sua rapidez torna-se na rapidez do vento, responsável pela fluidez no mundo, e as suas sandálias de fogo” mostrou-me as sandálias pintadas a ouro que, naquele rito, consagrava, “caminham deste modo, com esta mesma perícia, sobre a terra e sobre o mar, sobre as necessidades físicas e as necessidades emocionais” para mim o diabo falava bem, todavia tudo o que me dizia parecia-me bastante inacessível, ou utópico, e, como se lendo os meus pensamentos, afirmou que tudo o que acabara de me dizer era praticável, o requerimento era pratica para a perícia, e, essencialmente, o oportunismo, observar os aspectos positivos de cada questão, assim, por exemplo, em vez de utilizar o seu ensinamento em nome da minha própria impotência, poderia te-lo usado em bandeiras de prosperidade.
Pediu-me, no dia seguinte, para realizar, no mesmo caderno, dissertações humorísticas, de carácter irónico e sarcástico. Dei por mim mesmo a realizar esta tarefa com sagacidade, imaginava-me a estrangular os parasitas da falsidade e a urinar sobre os mesmos, realizava este exercício com toda a luxúria e desejo desperto com Pan.
Ocasião chegou em que encontrei o Diabo com um caduceu, à sua volta estavam duas serpentes vivas, perfeitamente simétricas, uma, de cor escura, que se enrolava com aquela de claras tonalidades. O caduceu era recto e, no seu topo, ostentava uma pedra violeta de um brilho deslumbrante. Assim que fitei o item resplandecente, da janela, ao acordar e após fumar uma dose, senti uma sonolência tomar-me. O diabo percorria o campo trigoso e, o sol, quando embatia no caduceu prateado, ofuscava um mundo inteiro. Esforcei-me por não voltar o meu olhar para aquele espectáculo e, com alguma ânsia, desci de encontro ao rio, apesar da fresca brisa, para o meu banho matinal. Encontrando-me eu sentado à sua beira, depois de um momento refrescante, ainda sem a possibilidade de desviar o pensamento do estranho objecto, o diabo sentou-se a meu lado. Questionei-lhe sobre a natureza do seu novo brinquedo e sobre como o prepara, ou onde o obtera. “És um tolo. O que te mostra este instrumento é o mesmo que te mostrei com o hemafrodita, a sua preparação é explicada por muitos alquimistas. As serpentes, uma é a força, outra é a forma, uma a luz, outra as trevas, e estas são atraídas ao bastão porque este é feito de pura Vontade, livre de distracções” Sem o entender, retorqui, “pensei que a vontade fosse a força sobre a forma”, mas o diabo riu-se, sem mais explicações. “E a pedra?” Divertido, o diabo respondeu: “É a pedra filosofal, tem o poder e o dever de adormecer todos os escravos para o despertar de todos os reis. Também os alquimistas disntinguiam entre o ouro vil, e o ouro da Arte, e nem alguns dos Adeptos se apercebiam de que ambos os ouros eram um só, a diferença jazendo no seu possessor” atirou, agora, um saco que carregava na sua mão esquerda, para o local bolorento. Á nossa frente, um remoinho de cores dançarinas percorria o rio. Curioso, revistei o saco com o olhar, sem me atrever a ser demasiado intrometido. “É um saco para o meu comércio, é o saco onde guardo as moedas” olhei-o, absorto, sem entender se estava a falar objectivamente ou por meio de mais metáforas. “Como os alquimistas, já que os referimos, tenho eu o dom da transmutação, transformo sinceridade em moeda. A moeda é a luz, a luz é energia, a energia jamais pode mentir, assim sendo a única forma que existe de negociar comigo é pela via da sinceridade. Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça.” Sorri, sisudo. “Com todo este poder, o que te faz dar ao trabalho de aqui estar? De continuar a realizar todas estas obras.” Riu-se diabolicamente, fitando o rio e deitando-se no solo. “Todos os verdadeiramente poderosos chegam a uma só conclusão: O poder engana-se a si mesmo, porque no fim, não reserva poder, mas existência por si só. Porém, se o poder pergunta porquê, não é o mesmo aquela fraqueza? Lembra-te do que te vou dizer, estes instrumentos que me vês passear, de nada servem, nem para entender a natureza do poder - cujo nome é acção e silêncio - até à sua própria e aparente aniquilação. Um instrumento é desenhado para trabalhar, para uma determinada função, acompanha o movimento do homem que o maneja, e estes instrumentos devem caminhar lado a lado do, e possibilitar o casamento da mente à profecia, dos passos às leis do universo, a consagração da emoção ao amor e à cupidez. Quanto ao facto de eu estar aqui, ai enganas-te, és tu que aqui estás, se tanto.” Pediu-me, então, que construísse máscaras sobre as entidades criticadas nos meus ensaios humuristicos, e que imaginasse em detalhe, a posição em que, se os esculpisse, se depositariam. Desconfiei das suas intenções, eu viajava, de momento, nas asas da loucura. Estava, apesar de tudo, muito certo de que o diabo não passava de alucinação, provavelmente um distúrbio de dupla personalidade, todavia as patologias impostas socialmente, para controlar a realidade do tipo rebanho, perdiam já o significado.
Foi então que, num determinado dia, eu escutei uma grande besta caminhar nos domínios do terreno e, verificando, dei com uma carruagem que transportava uma cancela, esta encontrava-se aberta e, escavando no solo, um boi de grandes porporções enfurecia-se. O diabo, calmo e como que pairando num outro mundo, um mundo imortal, de beleza e de poder, tocava a sua harpa, amansando o animal que, postrando-se, montou, seguindo com ele na sua melodia. Conduziu-o até mim. Recuei um passo. “Estás certo de que o animal não ataca?” Riu-se, interrompendo brevemente a sua divina música, o que me fez temer pelo possivel descontrole da besta. “É claro que ataca, eu apenas tirei a arma aos gigantes do caos, mas ela continua a ser uma arma.” Quando o questionei sobre qual a técnica utilizada para este feito, resmungou sobre a minha incapacidade de, simplesmente, e no total abrangido pela palavra, testemunhar. “Vês, é que te disse em tempos que a minha natureza se dignifica unicamente daquela do mensageiro: mas a mensagem que eu ensino é um segredo intransmissível, só se podendo transmitir pelas veias do silêncio. Posso te dizer, simplesmente, que para dominares a besta necessitas de dominar o caos, e que, para dominar o caos, necessitas de uma contra-corrente. Considera que todo o homem é a besta, e que todo o homem é uma matriz de caos, a sua sociedade procura ordenar este caos com hipocrisia, negando-o, assim sendo o homem já foi destruído. Hoje, a sua única força motora é uma mórbida vontade de auto-destruição. Porquê? Porque o homem não descobriu a contra-corrente, apenas se limitou a negar a corrente em que se situa à deriva, e a nossa única possibilidade de contra-corrente, ó desejado, é a Vontade. Recorda-te também do seguinte: o sacrificio jamais consiste em negar, mas talvez em possuir sem por isso possuir ou ser possuido, assim, o que possuis é livre e tu és livre, assim foi que o Anjo ganhou império sobre toda a terra. Considera que, todavia, se dedicares, sem gota que reste na prata do teu cálice, a tua vida a visionar a composição acertada para dominar a besta, através de uma harpa, sem duvida a estabelecerias.” Sorri, contemplativo e, recordando-me das minhas suposições, voltei a pôr em duvida a sua identidade. Descendo do seu boi, respondeu-me um pouco irado. “Se o que te tenho dito não te chega, lembra-te disto, eu não sou Adão nem Eva, mas sim o estranho – e considera-me um hemafrodita por favor - que comeu a maçã e obteve a serpente a seus pés para seu próprio deleite. De seguida, ordenei à serpente que mordesse em cima, no pescoço daquele Deus, que, tombando, devorei.”
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