CAP I
LIBERDADE
1 - Desejo
III
Cessara o consumo da estranha substância, não obedecera à dieta, e nunca mais estive na presença da minha estranha halucinação. Os pensamentos suicidas voltaram acompanhados do insano desespero. Por isso, um dia, já perto do fim, tomei como rito final um banho (depois de muitos dias) no rio, e fumei de novo. Soube, então, porque voltou a surgir, que ainda sendo esta uma halucinação, era real. Raramente, todavia, surgia, mesmo que inalasse a substância. Este facto era compensado por meio de uma estranha neblina que se instalava, parecendo conduzir os animais indicados a meu encontro. Indo à cidade, um senhor desconhecido oferecera-me dinheiro. “Para o que fosse preciso”, disse-me. E mesmo um conjunto de chacais me abordou entre a neblina, fingi-me morto no solo, e enquanto farejavam, apanhei um com uma pedrada, os outros fugiram. Foi então que o diabo começou a partilhar o mesmo mundo que eu com mais frequência. Agora ele estava comigo durante todo o dia. Disse-me que eu devia procurar posições opostas em relação ao mundo, e que deveria defender tanto uma como outra, e, ainda, atacar uma com a visão da outra, e vice-versa. Deu-me a ver um sigilo, que devia funcionar como uma ponte entre a minha consciência e a dele, segundo explicou. Este era o seu selo, que me aconcelhou a desenhar num caderno onde deveria escrever todas estas dissertações. Enquanto me ocupei de tais assuntos, desde manhã até à meia-noite o diabo trabalhou na construção de um tabernáculo com madeira. À meia-noite, ele destruiu-o. Quando o questionei sobre as suas razões este explicou-me que, de manhã, planeara o formato e a função da sua construção, tendo-se enamorado da obra completa ao meio-dia, despedindo-se da mesma ao pôr do Sol e, ocultando-a então à meia-noite. Ele disse-me que a única obra completa era aquela destruída, esta ultrapasara as portas da própria efermidade. Quanto aos meus exercícios, ele não me deixava explicações. “A prática deve fazer a teoria.” Afirmava. No dia seguinte, vi-o contemplar o Sol durante todo o seu percurso. Trazia, com ele, uma harpa, as cordas da mesma desencaixadas. Deixou uma corda apanhar os raios da manhã, outra os do meio-dia, outra as da tarde e, ainda, à noite, vi-o com outra corda do seu lado. “O que contemplas neste momento? O Sol ocultou-se já”, decidi falar-lhe, e ele retorquiu que observava, precisamente, o Sol Oculto. Eu estranhava os esquesitos hábitos da criatura e inquiria-me sobre qual a necessidade dela os fazer. “O verdadeiro templo é a acção, o Verbo, o arco-iris. Então, eu estou a deixar o testemunho do Templo, para que um dia ele seja da glória daqueles que venderam a sua alma pela segunda vez.” Ele disse que o movimento uno da alma tinha de ter uma habitação. No dia seguinte ele deitou-se, e a cada época do dia pegou numa corda diferente da harpa, explicando-me, mais tarde, que no dia anterior, através da contemplação do Sol, chegara a determinadas portas, e que hoje as ultrapassava, sendo o próprio Sol no seu rumo. “O que encontras para lá das tuas portas?” Inquiri, curioso. “De manhã, a omniciencia, a clareza máxima dos raios da mente. Quando o Sol está no seu pico, a omnipotência, a Vontade. Quando se punha, encontrei a omnipresença e o amor de quando se derrete de encontro ao mundo; então, à meia-noite, a sua imortalidade, só possível quando coroada pela morte. O culminar do trabalho representa agora a união de todas estas percepções num só poder.” Então ele colocou as cordas na harpa, e tocou uma melodia, mudando os céus segundo as cordas em que tocava e compondo uma harmonia que unia as várias notas segundo o rumo que lhe queria dar. A sua melodia fez-me viajar, vendo a cabeça de um homem na boca de um sapo que surgia do rio, engolido então por neve, em cuja água do rio se transformava. Então, uma bela dama de faces claras e reflexos azuis passeava-se. Quando lhe perguntei sobre o significado disto respondeu-me que o iria compreender a seu devido tempo, adiantando-me que ALGOg, era a estrela do Deus Decapitado, e que ele me iria decapitar utilizando os meus próprios artificios. Temi-o pelo que disse mas já me amarrara demasiado no prazer provindo da sua simples presença para simplesmente desaparecer dali. Perguntei-lhe como concedera tal poder à sua harpa, como chegar à união solar. “O Sol é a Criança, assim como o poder que tu vês. A Criança é o Soberano e o Conquistador, não passando, não obstante, de uma imagem. Dois princípios regem o Universo, um, que coagula, outro que dissipa, um que comprime outro que expande, um que concretiza outro que torna abstracto, um que Sabe e outro que Compreende, e em qualquer altura que a criatura esqueça que estes são os pais, condena-se à escravidão. Tudo o mais está para além da tua mente concreta, não te podendo assim nada explicar. Dizia-te: a prática e a meditação geram a teoria.”
Por esta altura eu começara-me a aperceber, através do meu exercício diário, que nenhuma posição em relação ao mundo é verdadeira e muito menos sustenta bases concretas, a única coisa real no meio de todas as teorias e atitudes de vida, era a escolha, e mesmo esta, deixada ao acaso ou ao engano do que, ilusoriamente, sustenta os vários pontos de vista. Quando mostrei o meu caderno ao diabo, ele não se mostrou satisfeito. Explicou-me que destruira a matriz que dá vida às falsas construções da realidade, pois a realidade era simplesmente realidade, livre. Mas que deveria ainda destruir a vida que já ficara impressa na minha emoção devido a tais construções pois, a energia, deixada sem controlo consciente, trata de se conduzir a si mesma. Para tal, eu deveria passar um tempo em vida social, realizando o mesmo exercício na prática. Quando retornei, estava mais desesperado do que no dia em que primeiro cheguei, todo o significado das coisas se esvaira já. Restara uma massa cega, irracional e animalesca, que está para lá dos conceitos do homem. O diabo explicou-me que era esta a matéria-prima, e que qualquer outro material impossibilitava aquilo a que ele chamava de “a Grande Obra”, sendo que muitos tentavam e falhavam ainda sem se aperceberem. Isto porque, segundo o diabo, trabalhavam únicamente pré-conceitos mentais, avançando em círculos. Eu queria agarrar-me a algo que me dissesse por onde ir, como são as coisas e o que fazer, e talvez ele, nos seus ensinamentos, fosse a minha escapatória. Questionei-lhe sobre se ele nascera mesmo no seio da tribo, e se sim qual é a relação da tribo com a do homem que morreu no rio. “O que te leva a pensar que eu nasci?” – “Nas tuas contemplações ao Sol tu começaste pelo nascer do dia, para esta conversa chegar aqui teve de primeiro começar, nascer.” Gesticulei. Eu mesmo era capaz de erradicar sem qualquer problema este raciocínio, devido ao meu treino, mas esperava pela segurança do diabo. “Ah, mas o Sol é continuo no seu percurso, ninguém sabe quando começou, e assim também o digo em relação ao que está atrás ou à frente. Nascer, para dar os primeiros passos - mas não é nascer, na verdade, o ultimo passo? O culminar? e daí…” Ri-me e ele também. Ele sorriu o seu sorriso e eu entrei no estado a que o último me induzia, um Pânico sem cordenadas para além de si mesmo onde se fixar. Ele riu-se ainda mais, e perguntou-me o que eu vi antes de o agarrar pela primeira vez. Retratei aquilo que me fora pedido retrarar da melhor forma que pude. Explicou-me que a entidade por debaixo do Ancião era Pã. A natureza de Pã revestia-se para a mente humana de um Pânico absoluto, na mais pequena manifestação e que, em si mesmo, Pã era luxúria e cobiça sem fim, a eterna criança. Assim, o diabo tivera o cuidado de trazer das habitações dos homens uma pequena surpresa, que trouxe até mim, e que constituía de uma prostituta em vestimentas escarlate e pele rosada, um sorriso pecaminoso e inocente, um cabelo poderoso e encaracolado, como que pertentence a uma medusa, olhos verdes, inteligentes e brincalhões, como um mar de bem estar ou um lago repleto de ninfas. Vestia uma bela camisa de ceda e uma saia com várias rachas que deixavam as suas pernas longas respirar e as suas fabulosas coxas darem ar de sua graça contra o tecido. Não conseguia tirar os olhos de tamanha formusura.
De novo, o diabo atingiu-me na face, e voltei a perder a minha orientação. Recompôs-me num outro nível perceptivo, onde me auxiliou a provocar, na minha mente, todas as situações de Pânico enquanto evocava Pã e eu repetia. Senti a tensão mudar, e um calor frio percorreu-me o corpo A dado momento tremia sem qualquer controle, e foi ai que abri os olhos para ver a face perversa e enganadora do eterno sincero Pã no próprio diabo. Neste momento, corri sem medições para a prostituta, cheio de luxúria por tudo, todo o pânico se tornara em lascívia, vontade de copular com qualquer coisa. De manhã, o diabo explicou-me que deixara a prostituta bem estragada. E riu-se. “Lashtar, é seu nome, e deverás tê-la de novo.” Sorriu, e desta vez senti uma incontrolável excitação concupiscente. “Explicou-me que jamais voltaria a sentir medo, agora tudo me provocaria a luxúria de um rei guerreiro, da Criança Conquistadora em união com o desejo dos seus pais um pelo outro. “Tu vês, primeiro busca os teus medos, então fode-os por cima com o maior deboche, só assim um homem se liberta” disse-me, piscando o olho. E eu sabia que, por outras palavras, me pedia para transformar toda a repulsa em atracção, e que jogavamos um jogo perigoso.
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