Saturday, June 10, 2006


A minha casa é toda feita amplitude. As suas paredes, que esmagam, são feitas de liberdade, estendem-se pelo ar purpúreo do que há lá fora. Eu posso ir até ao meu terraço, e engolir mais um cigarro enquanto ouço as estrelas e vejo as cigarras. E então ali, todo o mundo é meu, o castelo de Palmela, os postes apagados, os pirilampos, o bairro que se estende até á linha ferroviária, a quinta onde eles costumam fazer gritar o gado até à morte. A árvore curvada e farta, que fica entre mim e a quinta, e onde os morcegos gostam de se empoleirar em pequenos guinchos. Todas essas coisas mais as pedras do caminho. As paredes da casa, as suas telhas, as suas janelas, o branco com que ainda este verão a pintei. Os portões, já gastos, é verdade. A vista que se estende até Setúbal, e, lá no céu, bem, o que não é meu? O mocho que visita a casa vizinha e que, por vezes, voa sobranceiro por onde estou, soltando a sua perfurante voz. Os portões, verdes (ou serão realmente negros?), estão abertos. E por estes portões costumo ver-te e tu entras. Com aquele mesmo perfume que ressuscitaria qualquer Grenoille, um perfume envolvente que existe também no teu olhar e que, parece-me, se materializa na tua própria pele e mesmo nos teus cabelos e no teu jeito até. Quando por ali entras tudo muda, a casa deixa de se virar para fora e é engolida nos teus encantos.
Os portões estão abertos mas eu não saio. A casa está cheia de uma música que era nossa, como hei de sair e arriscar esquecer-te? Não sei, lá fora tudo me é estranho, e tudo me leva para longe de ti. E depois tu já não estás lá, já não trespassas os mesmos portões. E eu esqueço-me e lembro-me da minha liberdade. Aqui em casa tudo é meu. Aqui em casa eu olho para as minhas mãos, e sei onde estou. As paredes estendem-se pelo infinito e eu sufoco de liberdade. Os portões estão abertos, porquê sair? Aliás, se eu sair, e um dia procurares de novo entrar por estes portões, como posso eu recordar-te de longe? A casa está cheia de silêncio, onde nos ouvimos ainda. Há muito barulho lá fora, e eu tenho medo de deixar de ter espaço para mim.
E depois eu podia oferecer-te um namorado, quando te cansares de mim, e ver-te dançar com ele seria a mesma coisa, porque eu sou assim… É que lá fora tu estas perdida nos subúrbios, nas praças, na cidade e nas grandes superfícies, estas perdida nos becos sem saída e nos miradouros, e já não és tu. Surges de cara maquiavélica e queres devorar-me por inteiro. Entra, não fiques ai fora. Aqui de dentro, lá fora é mais bonito. Deixa-te estar aqui comigo, este será o nosso mausoléu. Aqui posso esquecer-te e depois lembrar-te. Podemos dançar a qualquer valsa, jantar o prato que quisermos, dizer o que quisermos, dormir quando quisermos. Aqui ninguém me chateia.
É que já não me lembro quem és, e sair era perder-te. És tudo o que tenho.

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