Thursday, June 08, 2006


CAP I
LIBERDADE
1 - Desejo

II

E enquanto eu morria, o peixe transformou-se no dilúvio e o dilúvio num mar de luz límpida e de caóticas trevas, um ancião alto de rosto fundo, rigoroso, misericordioso e sereno, em vestes brancas, observava-me, abria a boca e soltava um fluido em vortex, este continha pequenas chispas brancas, abaixo de si jazia um homem verde/cinzento, agachado, e sob a sua mão esquerda um bode, sob a sua mão direita um cordeiro. Acima do ancião, um poder sem fim esmagou-me. Levantei-me num último esforço de sobrevivência e lancei-me na direcção da aparição. Dei por mim a segurar num índio de carne e osso, o mesmo que eu observara. Este deixava-se abanar pelos ombros, o seu rosto parado, primeiro, baixo, e depois, como se ainda antes de se mover, a fixar-me imóvel. “Quem és tu?!” Gritei. “O que me está a acontecer?!” Sem mudar a sua expressão, ele respondeu-me. “Começando pelo fim, estás tu nos limites da razão humana, mas não sabes ainda como aqui vieste parar.” Então, esboçou um sorriso de todo aparvalhado que percorreu a sua cara de uma ponta à outra. “E eu sou aquele que te vai mostrar tudo, se, por acaso, me venderes tu a alma.” Perplexo, continuei a segurar firmemente os seus ombros. Ele soltou-se com gentileza e, pousando a mão nas minhas costas, conduziu-me até à casa. Como se a própria demência me impelisse, eu seguia os seus passos. Nos lavabos, por vezes perdia o meu recente companheiro de vista e sentia-me devorado pelo vazio, então avistando pequenas explosões de energia vermelha, como se hologramas de labaredas no ar. Agora nada fazia sentido, especialmente devido a neblina que me poetizava que tudo mostrava sentido. Fui conduzido, mesmo já sem ele, até ao andar superior, onde era esperado. A criatura, com um movimento simples mas irónico, destapou um dos móveis e encontrei um grande espelho redondo, seguro por dois pilares inscritos com o símbolos irreconhecíveis, eram figuras geométricas, uma, que parecia ser uma crescente, e outra, que se desenhava como um circulo de ponto centrado. “Olha”, com um gesto, sugeriu que me visse ali. Com um terror nocturno vivo do que poderia encontrar, ousei. Encontrei o corpo do índio na minha imagem. Imediatamente me senti impelido a defender-me da realidade que se desmoronava à minha volta e, por instinto, esmurrei o homem a meu lado, devido ao choque daquele inexplicável absurdo. Ele tombou e riu-se. O riso derrubou a barreira que ainda me separava dele, e ataquei. Precisava de o agarrar, imaginar que ainda tinha controle do meu mundo imediato. “Que espécie de lugar é este?!” Gritei, horrorizado, enquanto o esganava. “Ainda deitas a casa abaixo.” Riu-se. Repeti a questão, ainda não em mim. “Que variantes utilizas para definir a natureza de um local?” Não consegui raciocinar mas, por obra do acaso, a pergunta escapou-se da minha garganta com uma formulação diferente. “Que aconteceu aqui? O que está a acontecer?” Muito rapidamente, a branca palma da sua mão avermelhada, acertou-me na face e rebolei para o lado como que ébrio, totalmente baralhado e, simultaneamente, receptivo. “Um dia, um homem versado nas artes da mágica mudou-se para aqui e exerceu o seu eremitismo.” A sua voz tinha uma tensão estranha, que me recordava a sensação de um sonho densificado, sendo, ao mesmo tempo, de natureza leve, bem humorada e quase leviana. “Procurou”, continuo, “construir um templo e exercer o seu poder sobre a natureza sem qualquer empecilhos. Ele esperava abrir o portal para Aqueles Esquecidos, construir um local onde os deuses pudessem habitar tão concretamente como o homem e o homem tão abstractamente como os deuses. Como que cansado e no final da sua vida, insistiu num sinal para a indicação do seu sucesso. O rio destruiu o seu templo e tudo o que foi salvo encontra-se na pequena casa. Como que ainda inconformado, continuo a insistir e veio a desaparecer no rio. A história diz que nunca aqui ele esteve.” A sua expressão era sempre alegre e radiante, os seus olhos escuros brilhavam de felicidade, os seus movimentos como de um gracioso antílope, mas as suas feições eram carregadas e soturnas. “Quanto a mim, desde a minha existência, como minha, aqui viveu uma tribo primitiva, eles dizem que uma entidade surgiu das estrelas através da teia de uma aranha do rio, e que ensinou os ritos. O profeta e vidente era escolhido, entre uma elite, através de uma dança, as suas pernas e braços eram quebradas, os seus olhos eram-lhe roubados para outros fins, a sua língua dividida em dois, para o dom das linguagens, mais dois chifres eram-lhe impostos em determinadas zonas do cérebro, de modo a alterar certas faculdades do mesmo, e ele era amarrado a um trono e deposto na gruta secreta, debaixo do rio, onde sacerdotisas, escolhidas muito cuidadosamente, guardavam a sua vida. As sacerdotisas ficavam prenhas do vidente, e os homens exerciam a sua sexualidade unicamente com animais, isto permitia-lhes filhos especiais, determinados poderes, se me entendes. Diz a lenda que o vidente possuía um emissário, este emissário surgia como os próprios sonhos ou como uma voz no interior dos mesmos, como um animal em que se notasse algo de peculiar, ou como Aquele que Chama a Chuva.” Não conseguia pensar, era esta uma historia de terror para uma criança? Balbuciei qualquer coisa como querer saber como era “Aquele que Chama a Chuva”. Ele levou-me de volta ao espelho e eu vi a mesma coisa, o moreno corpo indígena. “Isto não faz qualquer sentido.” Retorqui uma vez mais, antes que me perdesse totalmente de mim mesmo, eu pensei poder ainda sair daquele lugar e quem sabe praticar o suicídio, numa despedida ainda minimamente digna, ou fugir de novo para o mundo social, o que desembocaria na primeira hipótese. Por isso, escapei para baixo, e ali descansei um pouco, fumando, tremulamente, um cigarro e desejando ter mais vodka em minha posse. Os sons, já repetidos e porém sempre acompanhados de uma indomada surpresa, rapidamente me levaram a querer escapar dali de encontro ao meu carro, e o meu carro não pegou. Ganhando coragem, sai, procurando correr até à vila ou à aldeia mais próxima. Ele esperava-me perto de uma árvore curvada, e sem eu o ver, tocou-me no umbigo e senti uma força azul ganhar espaço em mim como um êxtase sem qualquer tipo de final, a omnipresença do corpo. Senti-me ejacular, os músculos do ânus pressionados, a garganta sôfrega e os lábios secos, cai por terra enquanto gemia. “Não prestaste atenção à minha proposta… ela não é realmente uma proposta, a tua alma entregaste-a tu à loucura e ao abismo, estás disposto a dá-la à morte, e o abismo, a loucura e a morte são o domínio do qual eu sou porteiro, numa fronteira, e na outra. Podes chamar-me de Diabo.” Eu ria-me de prazer enquanto me esfregava no meu próprio corpo, com a certeza total de que todo eu estava, a meu bel-prazer, entregue ao diabo, engolido, sem deixar eco, na suprema alegria. Durante a vida não me tirara, atrás do pano do seu teatro, ele tudo o que me fazia viver e me mantinha sano? Eu percebia agora que o trato fora feito antigamente, pois eu concordara em reunir os pedaços e sacrifica-los a todos por este só todo, que me recordava (e penso que todos assim o recordamos) como uma nostalgia estranha do tempo antes de tudo, que, não se sabendo definir, não se merece. Agarrei-me então aos seus joelhos, ele cobriu-me com um braço e ajudou-me a deixar de tremer. “Vendi-te a alma, eu vendo-te a alma, é tua, está ao teu dispor.” Descobri-me, naquele momento, até com um não habitual erótico desejo de natureza homosexual. “Não, tu, agora, apenas a descobriste, e num relapso. Digamos que perdeste recordação da mesma no momento em que a vendeste ao meu emissário, o qual materializei por via de uma corrupção e reversão de mim mesmo.” Ele ajudou-me a apoiar-me no carro, ainda assim eu quis manter a minha mão na dele. “Não me lembro de vender a alma a ninguém. E que emissário é este?” Ele esboçou de novo aquele sorriso, como se eu fosse um bobo que o divertisse, ou, creio, como se ele fosse o bobo que ninguém sabe para o que sorri; e perante sorriso este eu tremi de terror e de simpatia. “Primeiro, os teus pais, o símbolo vivo do fruto do conhecimento corrompido pelas suas gargantas e vomitado de volta. Depois, a Igreja, O Presidente também, e os Ministros, a Escola, a Empresa. Na verdade, a alma nunca foi tua, porque a alma é livre, não é de ninguém, porém é ela o verdadeiro minério para todo o comércio. E eu sou o comerciante, tu és uma projecção de todas as minhas decisões, para mudares de situação, a única via é, sempre, através de um negócio comigo. Agora, tu chegaste, já ou ainda só meio-devorado, onde Ninguém chega. Podes voltar para a tua vida, mas o que te tirei nunca mais te será devolvido e viverás como um marginal e um insano, ou tu podes descobrir uma vida superior, esta ocorrendo não através da divisão e obscurecimento da alma, mas de uma direcção à qual chamamos Verdadeira Vontade. O que te proponho consiste no conhecimento e conversação da tua alma, ela é o expoente máximo de alegria, e depois em medires o seu preço, e pelo que a darás. Sim, eu serei essa coisa, porque algo que caminhe por ai fora, seja o que for, é o lânguido Diabo.” Abalado mas extasiado, esqueci-me da presença do próprio diabo, todas as coisas aconteciam agora muito rápido. “Tudo o que tens de realizar como prova de confiança nas negociações, será uma pequena fiança que consiste em fumares a erva onde primeiro me encontraste, e, por agora, cumprires uma dieta de serpentes, chacais, corvos ou qualquer pássaro necrófago ou de carne podre. Deves igualmente beber chás de rosas ou de cannabis, e a água do rio ou da chuva, e devias-lhe juntar uma opala, e uma esmeralda.” Apesar da sua proposta estranha (e como diabo caçaria eu estas espécies) não neguei o trato. Pensei, todavia, em engana-lo, eu queria enganar o próprio diabo, e estava convencido de que o caminho era esse mesmo. Dirigi-me para a casa. Á volta da cruz encontrei agora A L G O e A L M A.

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