Tuesday, June 06, 2006



CAP I
LIBERDADE
1 - Desejo
I


Desde quando se instalara a vertiginosa esperança do desespero, e as sombras vivas da duvida cristalizada, já sem qualquer desculpa, se tornaram vivas como um frio hálito no seu pescoço? Desde quando a certeza de que o visionário enforcado vivia em si, e de que todos os seus planos eram transportados para um abismo onde os perdia de vista na imensidão escura? Complicação era o nome de uma vida, pelo que preparara os seus escassos trapos e se movera para o México, procurando, entre as devoradoras labaredas do caminho, um sinal. A sua gritante agonia já despreocupada encaminhara-o para seguir o rio. O rio trouxera-o à presença luminosa e assombrosa de uma casa esquecida e já meio-comida. Estacionou, repentinamente, o seu pequeno carro branco, soltando poeira. Por momentos, a areia que levitava parecia preencher toda a sua visão. Aquele era o véu que poucos viam, e que, quando descoberto, os levava à insanidade nihilista e imoral. Ele era o cego que sabia ser cego, e a cegueira uma viva mordedura horrendamente lírica de que nada vale a pena.
Observou silenciosamente o pequeno edifício carcomido, a vivenda possuía dois andares, duas janelas tapadas por portadas de madeira já apodrecida pelo tempo, no andar inferior e, no andar superior, duas varandas unidas por um varandim de corrimão enferrujado. Não haviam, nelas, portas senão de penumbra acutilante, penumbra que parecia fitar o pequeno homem. Sentiu-se saturado, e sentiu, com satisfação, o ar igualmente saturado ali habitante, entrou através de um pequeno orifício ofuscado onde antes jazera uma porta. Encontrou dois pequenos lavatórios, um urinol e um penico, como um rasto de brancura no negro. Havia, ali, divisão para os dois pequenos compartimentos que ofereciam vista para as portadas cerradas, tudo o que ali anotou, além de teias de aranha, insectos voadoras que interrompiam a sua vista de quando em quando, e de um estranho som que supôs se soltar de um animal, foram dois compridos e estreitos canteiros imersos na falta de luz. Voltou para os lavabos onde seguiu uma balançante escadaria em espiral de encontro a uma ampla sala. Pode então observar os vultos do que seriam vários móveis cobertos por panos de veludo, e a pequena corrente que antes funcionaria como interruptor aos vários candieiros de cristal pendentes de um tecto em parte tombado, tendo, alguns dos candeiros sido quebrados no chão. Escutou o que parecia um som sibilante, talvez de um réptil em tamanho avançado. Experimentou-o, por curiosidade, e testemunhou à iluminação de toda a casa, à excepção do andar inferior e da zona tombada.
Alguma coisa de cristalina coabitava consigo, o que pensou emanar de uma grande bola de cristal multifacetada que, resplandecente, raiava no tecto. Subitamente, o lugar inspirava-lhe vómitos, e ele afastou-se para a rua.
Encostou-se à parede já de tonalidade cinza, recuperando domínio do seu estômago e da sua alma, que lhe parecia estar a ser arrancada por uma mão de garras que não pudessem ser vistas. Foi com surpresa que avistou um pequeno graffiti que esculpia uma negra cruz tumular, as letras “A” “G” “L” “A” no sentido relógio estavam inscritas nos quatro cantos, contrariadas em sinistrogiro por “A” “L” “G” “O”. Em baixo, em estranha e porém perfeitamente legível caligrafia, um pequeno verso que, de visão ainda desfocada, o nosso homem leria. “Esperei por aquele que nunca cá esteve, e ele nunca abandonou o local. Eu sou aquele que nunca cá esteve.” A vertigem aumentou, a visão parecia apagar-se. Cambaleando, seguiu o rio. O som dos grilos e das rãs parecia-lhe distante e porém penetrante. Caiu perto da água, e sentiu-a pucha-lo com a corrente, ainda que não a houvesse ainda tocado. Escutou um borbulhar repentino e parou o seu olhar num remoinho. O remoinho espalhava e sugava belos reflexos do luar, sentiu-se a adormecer.
Ao despertar, encontrou-se voltado para o lado contrário do rio, onde a ainda desregulada retina encontrou uma bolorenta, verde, acinzentada e irregular vegetação, coberta de traças e sob a qual viviam bandos de verdes aracnídeos. Recordou-se da quantidade de vodka que estivera a beber e justificou a sua condição. Tentou erguer-se e, talvez assustadas, as traças levantaram voo no que pareceu a desfragmentação total da imagem, tombando, o homem voltou ao estado inconsciente.
Voltou a si numa apertada sensação de sufoco, a tempo de se aperceber que uma serpente penetrava a sua garganta e se afundava no ácido do seu estômago. Parecia sentir-lhe, dolorosamente, o peso e apesar de todos os esforços, não conseguia expulsar a serpente que ali se alojara. Sofreu de febre (cujo calor o levou a despir-se) e de tontura, naquele dia sentou-se exactamente onde estava, fitando uma rapina que ameaçadora ou simpaticamente repousava perto da substância bolorenta, talvez um falcão, talvez um abutre, questionava-se como poderia confundir entre animais tão diferos em aspecto.
A serpente, talvez, se espalhasse já pelo seu sangue e parecia o homem voltar à sua percepção quotidiana e ao domínio de si mesmo, notando agora como estava cheio do pó que se soltava daquela vegetação, tendo tombado lá perto, inalado-a. Questionava-se sobre a veracidade do evento da serpente quando, a rapina, levantando voo finalmente, deixou a poeira iludi-lo na visão de um corvo e então de um índio corpolento, de pele lisa, dançando nu e de cabelos espessos no fogo quando se deu um trovão. Uma traça, exaltada, prendeu-se aos seus lábios, e outras vieram até si, acabando por velar os seus olhos. Sentiu chuva a percorrer-lhe a pele e, peculiarmente, invadiu-o uma sensação de paz, de paz com as traças, como se mergulhasse num lago verde de profundidade infinda, num olho de uma criatura que a sua realidade não abrangia mas que atingia através de um novo espaço. A chuva caía agora com força, e ele apercebeu-se, só mais tarde, de que não só as pingas percorriam o seu corpo, mas dezenas de aracnidios. Em pânico e impotência, ferido pelas mesmas, voltou a um estado débil.
Recordava-se da estranha ocorrência, chuvia ainda, e o rio subia, banhando-o já. A sua pele estava marcada, e ardia-lhe, mas não havia rasto das aranhas, só a sua saliva através do seu corpo. A fome consumia o seu corpo e o seu pulsar, desceu, molhando-se até à cintura, para o rio em busca de um peixe. A abundância dos mesmos não tornaria difícil a sua captura auxiliada pela grande concha que acabava de calcar sob a água.
Satisfeito com o seu alimento voltou para a terra húmida, arrancou o peixe à água. Era um belo peixe azulado, notou, fitou então as nuvens pálidas enquanto a chuva abrandava e o ar se tornava letalmente seco e eléctrico. Escurecia. Voltou-se para o peixe e, ao contrário do que a sua memória admitia, o peixe parecia ser agora pálido, maior, e possuir duas estranhas e escamosas pernas como duas anomalias. Este peixe possuía duas pequenas barbas e um olhar frio, agudo, e de simultâneo, todo abrangente. Ele sentiu-se a morrer.

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